terça-feira, dezembro 16

Pela noite se apresenta misteriosa
Jogo de sombra
Senhora de gostos caprichosos
Mulher de gestos gastos
Tão cedo a vista se acostuma
Logo transmuta-se em cores de esperança
Acolhe a vida cotidiana como uma mãe
Sob a luz, canta com as vozes alheias
Pedra ante pedra
Tic toc
Aceleradores
Tic toc
Passarinho não!
Sapatinhos tic toc
São vozes roubadas
Não te engana, a bicha é fera
É mais tarde que se vê direitinho
Corujas, grilos, tic tocs rapidinhos
Namorados e namoradas
Às vezes sem amor algum
Sereno úmido e brilho amarelado de sóis artificiais
Nada mais poético que luz de lua no asfalto molhado
Tem pouca gente, porém mais encanto
Abriga loucos, poetas, andarilhos, vagabundos, putas, etc... Submundo, dizem
Todos um dia recorrem ao submundo, vá lá!
Os ratos correm pelas veias e pela pele escura
Escuro que esconde sujeira ao mesmo tempo em que amplia
Jogo de sombra
Medo da própria sombra
Ilusão convincente de um espaço transportado em seu próprio tempo
Todo dia, tic toc
À noite a rua tem voz própria
 

domingo, julho 13

Pescaria


A face oculta da mulher que passa
Supostamente me escolheu
E antes que reparasse no olhar,
já era cativa de suas formas
Um peixe bobo fisgado pela isca certa
Ou peixe grande predador
Ao puxar a linha me encarou,
cravou os olhos como garra nos meus
Engoli em seco
Pisquei, desviei a vista
Veio direta e letal
Pro meu lado com tantos lados de sobra
 Decifra-me ou devoro-te!
Queria te decifrar, devolver o favor antropofágico

Descobrir se era pesca ou predadora
Queria, quis e não fiz
Escorreguei como peixe que escapa do anzol
Saí as pressas sem coragem de te gravar na retina






quinta-feira, julho 10

Esquartejamento metalinguístico

Peguei um poema pela gola e lhe cortei a garganta
De comprido, um pouco meio de banda
Sagital, um tanto transversal
Puxei pela fenda laringe e língua
Gorda e afiada, contorcia-se no chão a voz do poema
 Estrebuchava marcando de sangue o chão com palavras
Abri o ventre do poema e saíram tripas cursivas
As grossas e delgadas convulsivas
Palavras de dor e dor
Arranquei os olhos do poema e escaparam cachoeiras de lágrimas
Escorriam e cavavam na pele do poema a tristeza do não ser
De dentro o lago calmo de massa encefálica escavado por lágrimas cáusticas
A alma do poema, pensei
Ainda assim havia pulso
Procurei a alma no peito de onde saía a voz mais forte
Pedradas dilaceraram o esterno e com a mão o coração foi arrancado
Tum tum tum tum tum
A voz não calava
Forte, triste, pesada, cada vez mais longe para onde a palavra corria
Pulmões, rins, baço
estripei o poema inteiro
Quando me dei por satisfeita, datei
Abandonei a caneta e fechei a página
Aqui jaz a voz de um poema morto

segunda-feira, junho 3

um tédio enorme da vida

Era sábado. Mas talvez fosse domingo ou qualquer outro dia da semana, não importava. Mas era certamente muito cedo, ainda havia sol. Acordou e continuou deitada, sonhando acordada, sonhando com o céu lá fora que parecia tão distante, mas bastava descer as escadas, passar pelos portões e olhar para cima. O problema era que, assim, o mundo lhe viria inteiro à vista e aos ouvidos, ela não podia passar por isto novamente. O problema número dois era que aquilo seria necessário, a comida havia acabado e ela se lembrou enquanto olhava para o teto branco e o ventilador parado, sentia que o tempo não passava. Mas passou. Veio a vontade de fumar, o cigarro também acabou. Levantou-se num salto, vestiu o primeiro vestido que encontrou pelo chão, lavou a cara e mascarou-se com os óculos escuros. Saiu de casa e se maravilhou com a beleza do mundo e com a imundície do humano, pensava na palavra imundo e dizia a si mesma "o humano é sujo, o mundo não". Mas ela estava de férias, não precisava se preocupar com raízes e etimologias, ou pelo menos, não queria se preocupar com coisas dessa natureza tão pouco natural. Comprou um maço de cigarros de filtro pardo, quase não conseguia esperar sair da padaria, comprou também um sonho - dormido -, dois pães e uma garrafa de vinho.
Fumou o primeiro cigarro na praça, observando as crianças e seus pais ocupados em conversar ao celular e lixar as unhas. Seria fácil roubar uma daquelas crianças, mas demasiadamente trabalhoso. Eram tão lindas e as peles eram tão viçosas, pareciam flores, as bochechas frutos frescos e frios. Não eram como as suas bochechas, fruto amadurecido pelo sol, murcho, quente, doce demais. Sentiu-se só, quando teria seus filhos? Queria mesmo ter filhos? - Quem disse que toda mulher quer filhos? A inquietação cresceu, não fosse o cigarro, estaria ofegante, mas havia o cigarro no fim, moveu-se em direção à lixeira e pensou que, se jogasse no chão, talvez alguém pudesse pegá-lo, levar à boca e, indiretamente, beijá-la. A ideia lhe parecia interessante, mas apesar da solidão, preferiu levar a bituca até a lixeira. -Talvez fosse hora de comprar um cachorro, a solidão seria menor e as visitas à rua mais frequentes.

inquietude

eram umas bocas frescas, não úmidas
umas peles pegajosas
e mãos viscosas que me escorriam lentamente
cachos permeáveis pelo suor que escorriam deletérios
todos os sentidos e ainda além, havia cuidado
melindroso
melindrosos
havia fogo e se consumiam
volúpia volátil
desejo sem volante
dançávamos ao som da valsa primeira
dos sons humanos primários da descoberta
éramos leves e voávamos 
diáfanos
pó, poeira
neblina que se cria no arrebol e que se acaba no arrebol seguinte
corpos intangíveis
sapatos cansados da dança
dispensa dos sapatos
dança incontida
e um adeus doído
acabou 
chorare

segunda-feira, dezembro 3

Desejo de amor eterno

A pálida luz da lua,
            minha amada
Aquiesceu-se num lampejo
ao ver-te,
            minha amante
Talvez contristada ao ver
suas órbitas cheias,
reluzentes
enquanto dela só podia
ter uma vista minguante...
Teus olhos, amante
também brilhavam rubros
E como Ismália apaixonada
meu coração se quebranta
Ante o olhar da velha amada
E os olhos da jovem amante
Como a terra
eu sentia
que orbitavam vossos olhos
 - em torno de mim
Quisera eu, pobre polo magnético,
atrair-vos!
entretanto, sou Gaia
Não me concernem duas luas
ou dois sóis ao meu redor
E vós, astros luminescentes
vem em direção a mim
- vosso ponto de colisão
Assim, durante a noite densa
o ciúmes de minha amada
me afogará
na profundidade lunar da maré
de teus olhos lacrimosos
Ela se quedará inquieta
despedaçada!
Revelará fulgor jamais visto em criatura lunar
Supernovas surgirão ao amanhecer
Outros astros tomarão o seu lugar.
E tu
tu que acordarás num leito estranho
sem saber como lá fostes para
De mim terás apenas lembrança distante
Não saberás sequer se um dia existi
Minha luz
          em ti
restará distante,
mil anos luz para dentro de vossas iris
Apesar dos pesares
dos passares
separares
das dores...
Pertenceremos um ao outro em seu
      infinito e infindável
universo interno.

This must be the place

Maquiagem borrada de choro, elevada porcentagem de álcool no sangue, cara e cabelo de Marla Singer. Nome de Marla. E canta.
Pega o microfone, apresenta-se. Começa a música, demora a começar a cantar, a introdução é longa, quase entra na hora errada.
Morre de medo, naive melody.
- Lar é onde eu quero estar.
A voz está embargada.
- Me pegue e me leve pra uma volta.
Acha que saiu do tom.
- Eu me sin

to dormente, queimando com um coraçãozinho fraco.
Ela se sente realmente dormente e queima um coração fraco.
- Então... Acho que estou me divertindo.
Marla sabe que aquilo é tristeza.
- Pelo menos podemos falar melhor sobre isso.
Poderíamos ficar calados também... Há silêncios que dizem tanto... Talking Heads, quase ri.
- Maquie-se enquanto vamos...
Marla gostaria de ter se maquiado antes de subir ao palco.
- Pés no chão. Cabeça no céu.
Firme. Só faltam dois minutos.
- Esta tudo bem... nada vai errado.
A música segue, Marla descobre que não vive no lugar em que gostaria de estar. Lembra-se das últimas brigas e percebe que talvez sejam apenas as pessoas erradas e os lugares certos. Marla se confunde entre o ser e estar.
A música termina e as tímidas palmas começam, foi a apresentação mais emocionante da noite no karaoquê.
Marla se agarra a qualquer pescoço e beija com fervor, ela queima apesar do coração fraco. Ela só procura em outro peito uma casa para aquele coração fraco.
Não percebe que o lugar é ela.
Encontra qualquer cara e diz "este deve ser o lugar"
I'm just an animal looking for a home
Share the same space for a minute or two
And you love me till my heart stops
Love me till I'm dead
Eyes that light up, eyes look through you
Cover up the blank spots
Hit me on the head
Ah ooh
 

quarta-feira, novembro 14

cantigas de amor sem eira nem beira

Tenho por ti um amor feiozinho, 
fraquinho, 
ordinariozinho...
Mas ainda assim amor.
Amor que vai, 

bate 
dá de cara com uma porta fechada e volta 
choroso, sem resposta
Amor de raízes fincadas no nada, 

que fere e fenece por falta de ferro,
de água,

de sol, 
de terra, 
de chão, 
de ar
Amor que me tira mesmo o ar. 
Amor que definha, 
que não se define, 
amor que morre de fome. 
Amor frio, 
ferido, 
fracassado.
Amor mais que sofrido
Esforçado 

e fim...
Cansei de falar, mal agradecido.

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Não fui eu que disse que prefere não me ver
Que prefere não saber
Que prefere ouvir dos amigos meus o quanto vou bem

                     - Vou indo enquanto você não vem.
Quando mal conhece as lutas diárias que tenho

                 - Não sou eu que te desdenho.
Quando mal te atentas para a tristeza que se atulha aqui

                      - Corta-me de ti com um bisturi!
Ralha-me "ingrata"!
Julga-me egoísta!

Desce a chibata!
Corta-me os olhos!
Arranca-me as tripas!

Mata-me, enfim!
Mas não fujas mais de mim.

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João, eu te amo!

sábado, outubro 13

Algum lugar além do arco íris, ou através da tempestade


Ela buscava um caminho
E nesse caminho me encontrou
Eu, nela, perdia o que me faltava
E estar junto dela não me bastou
Ela queria um caminho que a levasse para longe
Eu queria, dela, retirar o melhor de mim que se esvaía
Vagamos por terras inóspitas em que me perdia
- nela, sempre e mais nela
Meu coração já vivia cativo de seus encantos
E, sem coragem, estava aos prantos
Minha cabeça girava
e caía
e me estrepava
e me extinguia
- nela, sempre e mais nela
Ao cair, virei três
Espantalho, ferro velho e leão
Perdi a valentia, a simpatia, a lucidez
Percebi os anos caminhados em vão
Ela encontrava seu caminho amarelo
e seus sapatos vermelhos
Ruía então nosso imaginário castelo
feito de rubis, esmeraldas, fogo e espelhos